sexta-feira, 7 de janeiro de 2011

O Sacy

A primeira postagem do Mitologia Brasílica poderia ser uma apresentação do tema, ou uma justificativa do nome, ou uma homenagem a Monteiro Lobato, Câmara Cascudo, e tantos outros brasileiros ilustres que dedicaram suas vidas e obras ao engrandecimento da cultura brasileira. Preferi postar o primeiro texto que eu escrevi sobre mitologia brasílica: O que começou como uma justificativa para um esboço, se tornou quase um "inquérito", como o que Monteiro Lobato fez nos anos 20, sobre o Saci-Pererê. O texto é uma adaptação do que foi publicado no Project Mayhem e só pode evoluir com a contribuição de outras pessoas.

O texto surgiu como justificativa para os dois estudos sobre o Sacy e tornou-se uma discussão sobre a trajetória do mito original guarani e o nascimento da cultura nacional e de seus novos mitos. A partir daí, surgiu a idéia de documentar e discutir uma das mitologias mais ricas e fascinantes do mundo, tão pouco conhecida e valorizada pelo seu povo.

O texto abaixo foi adaptado do original e alterado em algumas partes para poder acomodar as respostas e contribuições que surgiram depois... Pretendo escrever tudo novamente num futuro próximo!


Sacy, publicado originalmente em 9 de outubro de 2010:

O Sacy é um goblinóide brasileiro, monópode, carnívoro/omnívoro, hematófago, de hábitos noturnos e consumidor de fumo índio! Como outros "tricksters", seu poder está associado a algum fetiche, que varia entre o barrete, o cachimbo ou o bastão em algumas versões. Se você controlar o fetiche, o goblin estará subjugado.



Sacy, Iasy Yaterê, Matin' Tape'wera e Saci-Pererê, são apenas algumas variações regionais pra nomear a mesma criatura! Eu preferi 'Sacy' pela proximidade com Îasy, do nheengatu adaptado do guarani, a Lua. Existe um "daemon" brasileiro chamado Iasy Yaterê, que é um "filho da Lua", um gênio florestal, que protege a mata e os animais dos exploradores brancos. Existe ainda o Matin Tape'wera, que é um ahiãg, ou um demônio amazônico, que se comporta como um "trickster" clássico. No Nordeste e na Amazônia, o mito original foi adaptado, fazendo surgir a Matinta Pereira, que eu espero discutir num tópico futuro.

Nunca imaginei o saci como um negrinho de uma perna só! A figura do saci negrinho surgiu talvez na Bahia ou no Nordeste, mas foi popularizada pela obra de Monteiro Lobato no começo do séc. XX, na figura do companheiro de caçadas e aventuras de Pedrinho e da Emília. Comecei a desenhar umas versões para os personagens principais do Sítio em 2008, mais próximas talvez das figuras imaginadas por Monteiro Lobato e baseadas em ilustrações das edições mais antigas de "O Saci", por exemplo, tentando me distanciar dos personagens da franquia da Globo.

Conversando outro dia com a Carol Jamhour e com o Luiz Alves, discutindo a respeito dos goblins e seres encantados da Mitologia Brasílica, tivemos algumas idéias que eu quis juntar na mesma criatura! O Sacy é hematófago. Como é um mito sulista, difundido principalmente entre os guarani da região da Missões, o sacy geralmente é retratado se alimentando do sangue do gado, mas principalmente dos cavalos, pendurado nas crinas dos animais, cavalgando em pânico pelos pastos durante a madrugada. Por isso essa carinha de morcego. Na verdade, num outro desenho que eu fiz de uma fêmea, adaptei os dentes pra alguma coisa mais próxima dos dentes das piranhas, mas a idéia original era uma carinha de morcego!



A cultura portuguesa assimilada à cultura do gentio, adaptou dois 'tricksters' ibéricos na figura do Saci-Pererê. O 'Fradinho da mão furada', que brinca com um tição aceso, jogando de uma mão pra outra através da mão furada; e o 'Trasgo', que se parece com o 'Gorro Vermelho', descrito de forma magnífica por Froud e Lee, de onde vem o píleo, que na verdade nem é um gorro, e sim aquele chapeuzinho italiano, que se parece com o chapéu do Robin Hood. Algumas das primeiras versões do saci, substituem o píleo pelo barrete frígio, que é o gorrinho da Efígie da República. Seja como for, se você rouba o gorro, o cachimbo ou até uma bengala ou cajado, segundo algumas versões, você controla o 'trickster', mais ou menos como um Leprechaum. Eu quis um gorro mais parecido com os que seriam confeccionados por um goblin, e não um barretinho português!

Sacys não são negros, sacys são pretos e peludos! Uma pelagem preta como a de um morcego ou de macaco. A perna do sacy é sempre a esquerda; Sacys não tem genitais aparentes: Eles copulam por uma cloaca (que aparece no segundo desenho); Sacys botam ovos dentro da taquara, nos pântanos e você pode vê-los, se olhar com cuidado entre as taquaras rachadas, desde que esteja com um olho tampado! Nunca olhe um ninho de sacys com os dois olhos ou os ovinhos eclodirão e eles queimarão seu olho com um tição aceso!!

As mãos e pés são bem parecidas e tem garras. As mãos e pés não tem vários ossos comuns à anatomia dos membros humanos, o que seria desejável num humanóide, mas eu queria fazer um sacy com a 'mão furada', ou algo que sugerisse isso. A possibilidade de brincar com coisas entre os dedos, passando pelos 'furos' das mãos e pés ( que ele usa pra várias coisas)!



A fêmea apresenta dimorfismo sexual leve, caracterizado por glândulas mamárias inativas. Os ovos de saci são postos em taquaruçus durante a lua cheia, e seu desenvolvimento dura sete anos. Nesse desenho eu tentei reproduzir as fases de desenvolvimento do saci dentro dum gomo de taquara. Em 'O Saci', Monteiro Lobato descreve um sacizeiro - um berçário de sacis - e seu ciclo de vida, de setenta e sete anos:

— É aqui, dentro destes gomos, que se geram e crescem meus irmãos de uma perna só — disse o saci. — Quando chegam em idade de correr mundo, furam os gomos e saltam fora. Repare quantos gomos furados. De cada um deles já saiu um saci.
Pedrinho viu que era exato o que ele dizia, mostrou desejos de abrir um gomo para espiar um sacizinho novo ainda preso lá dentro.
— Vou satisfazer a sua curiosidade, Pedrinho, mas não posso revelar o segredo de furar os gomos; portanto, vire-se de costas.
O menino virou-se de costas, assim ficando até que o saci dissesse — “Pronto!” Só então desvirou-se e com grande admiração viu aberta num gomo uma perfeita janelinha.
— Posso espiar? — perguntou.
— Espie, mas com um olho só — respondeu o saci. — Se espiar com os dois, o sacizinho acorda e joga nos seus olhos a brasa do pitinho.
O menino assim fez. Espiou com um olho só e viu um sacizinho do tamanho de um camundongo já de pitinho aceso na boca e carapucinha na cabeça. Estava todo encolhido no fundo do gomo.
— Que galanteza! — exclamou Pedrinho. — Que pena o povo lá de casa não estar aqui para ver esta maravilha!
— Esse sacizinho ainda fica aí durante quatro anos. A conta da nossa vida dentro dos gomos são de sete anos. Depois saímos para viver no mundo setenta e sete anos justos. Alcançando essa idade viramos cogumelos venenosos, ou orelhas-de-pau.
Pedrinho regalou-se de contemplar o sacizinho adormecido e ali ficaria horas se o saci não puxasse pela manga.
— Chega — disse ele. — Vire-se de costas outra vez, que é tempo de fechar a janelinha.
Pedrinho obedeceu, e quando de novo olhou não conseguiu perceber no gomo do taquaruçu o menor sinal da janelinha.

No trabalho de Kreüther Pereira “Painel de lendas e mitos da Amazônia”, encontramos uma versão amazônica do mito, onde o sacy se confunde com a matinta e outros "licantropos" brasileiros.

O autor cita duas definições controversas pro nome "sacy". Segundo o grande folclorista e antropólogo Luís da Câmara Cascudo, saci (h-ã-cí) significa "o que é mãe das almas"; Para o sertanista Teodoro Sampaio, saci (ça-ci), significa "o olho doente", talvez tentando significar mau-olhado ou o mau agouro que está associado à matinta ou ao yasiyateré paraguaio, ambos, pássaros associados à figura da velha maltrapilha que pede fumo.

Câmara Cascudo diz que a aparição do mito do Sacy se deu no final do século XVIII: "vindo do Sul, pelo Paraguai-Paraná, justamente a zona indicada como tendo sido o centro da dispersão dos Tupi-Guaranis".

Entre os guarani do Paraguai, encontramos o mito do Yasiyateré, que longe de ser um negrinho monópode, é um anão loiro(?), barbudo, nu, que usa um grande chapéu de palha e um bastão dourado; que emite o assobio característico da ave do mesmo nome, o yasiyateré, mais conhecido no Brasil como peixe-frito.

Ainda no trabalho de Kreüther Pereira: "O mito do "Çaci" assume diversas denominações. podendo ser SACI PERERÊ no Sul do país, KAIPORA no Centro e MATINTAPEREIRA ou MATY-TAPERÉ ao Norte. No Pará e Amazonas sua imagem é a de um curumi que anda numa única perna e tem os cabelos cor de fogo. Parece que através do sincretismo luso-africano, ele ganhou o barrete vermelho - comum em Portugal - e os traços negróides, mais o cachimbo.
Dizem que o Saci tem por companheira uma velha índia - ou uma preta velha, maltrapilha, cujo assobio arremeda seu nome: Mati-Taperé. Crêem alguns que ele é filho do Curupira; outros identificam-no como um pequeno pássaro que pula numa perna só; há também aqueles que dizem ser as mãos dele furadas no centro."

Acredito que a origem do saci negrinho seja mesmo a mitologia africana adaptada à mitologia do gentio. A figura do orixá Ossãe, do yorubá Òsanyìn, o orixá das plantas medicinais e sagradas, é representada às vezes acompanhada de um anão monópode, Àrònì, que fuma permanentemente um cachimbo feito de casca de caracol enfiado num talo oco cheio de suas folhas favoritas.

O Exu, do yorubá Èṣù, sincretizado nas Américas como o Diabo, é representado com um gorro vermelho e um porrete mágico, o ọgò, que teria a propriedade de transportá-lo a grandes distâncias e de atrair objetos situados a distâncias igualmente grandes.

6 comentários:

  1. Cara eu escrevo contos sobre mitologia "brasilica"... (mas sem pretensão de publicar, apenas por gosto dessa nossa vasta mitologia e folclore) e em uma dessas pesquisas encontro seu Blog e devo admitir q essas suas ilustrações são as mais fantásticas que eu já vi! Tomei emprestado e to mostrando em sala de aula! Tbm sou professor! Abraço e sucesso continue postando!

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    1. Obrigado! Havia abandonado esse blog, mas vou voltar a postar!

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  2. Grande qualidade em teu material. Parabéns! Sou pesquisador e crio Sacys Pererês e Açús. Abraço.
    Alexandre Fávero - www.clubedasombra.com.br

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  3. Super Viajado o teu modo de desenhar o Sacy! Gostei muito!

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